Entre palavras, feridas e resistências
Sou cria da escola pública, moldada nos corredores da Escola Souza Leão, onde aprendi que o mundo é imenso mesmo quando o horizonte parece estreito. Foi ali, entre cadernos surrados e sonhos costurados a mão, que nasceu o desejo de entender o que faz do mundo um lugar tão duro para algumas e tão leve para outros.
Em 2015, entrei pela porta da UNESP de Marília carregando todas as vozes que me antecederam. No curso de Ciências Sociais, fui bolsista da CAPES pelo programa Residência Pedagógica em Sociologia e, orientada pelo Prof. Dr. Luís Antônio de Souza, pesquisei o feminicídio não como estatística, mas como marca cruel deixada no corpo das mulheres. Escutei suas histórias em Tupã-SP e, com elas, escrevi o TCC “Violência de Gênero e Feminicídio: Imaginário e Construção Social” — porque sempre acreditei que escutar é, também, um ato de luta.
A pandemia veio e, com ela, um silêncio pesado cobriu tudo. Foram anos de dor coletiva, medo e luto. Ainda assim, a escrita me encontrou. E resisti — me reconstruí em palavras. Em 2022, retornei à UNESP para o mestrado, novamente sob a orientação generosa do Prof. Dr. Luís Antônio de Souza e com o apoio da CAPES (Código de Financiamento 001). Minha dissertação, “Literatura de Mulheres Negras no Brasil: uma análise da obra de Carolina Maria de Jesus a partir da noção de cuidado de si”, nasceu desse tempo de ruínas. Carolina foi minha bússola. Com ela aprendi que escrever também é se curar.
Hoje, em 2025, sigo no doutorado em Ciências Sociais na mesma casa que me acolheu — orientada pela Prof.ª Dr.ª Maria Valéria Barbosa. A pesquisa atual, “Uma escrita de resistência em Maria Firmina dos Reis: cuidado de si, escrita de si e escrevivência na formação de identidades de mulheres negras”, propõe um diálogo entre Conceição Evaristo, Foucault e Maria Firmina. Três tempos, três corpos, três insurgências que, em mim, se entrelaçam.
Minha escrita é prática de si. Meu corpo é território de memória.
Pesquiso com as entranhas, escrevo com o peito aberto e sigo:
por mim, pelas que vieram antes — e pelas que virão.
Pesquisa e poesia
A minha primeira poesia nasceu quando eu tinha sete anos. Foi antes mesmo de eu saber o que era um poema. Eu mal sabia o que era escrever — mas algo dentro de mim já sabia. Enquanto aprendia a juntar letras, palavras e frases, fui também aprendendo a costurar sentimentos, dores e devaneios. Meu processo de alfabetização foi também meu processo de libertação. Porque, desde sempre, escrevi não por escolha, mas por necessidade. “Por fim, meus braços caíram, a água era irresistível. Eu não mais lutei, só deixei que cada centímetro fosse preenchido…”
A poesia me escolheu como um sopro. Veio de dentro, como um grito que precisava existir fora de mim. Sempre brinquei que meu superpoder era escrever — um dom que desce fácil pela garganta, como o ar. Escrevo como quem respira, como quem sobrevive ao afogamento criando ilhas de palavras. “Eu nunca estive na crista da onda, sempre permaneci mais abaixo, no mar me afogando e pedindo socorro…”
Na infância, escrevia em cadernos escondidos. Na adolescência, rabiscava frases soltas nos cantos das provas. Mais tarde, me assumi poeta — sem ter planejado. Mas sempre soube que meu corpo carregava palavras. Que eu era feita de memória, invenção e sal.
Como mulher, sempre senti e compreendi a violência — não como conceito, mas como experiência vivida. Porém, nunca quis que esse fosse o meu legado. Não aceitei que a dor fosse minha herança. E foi quando vi na escrita uma possibilidade de resistência, eu resisti duplamente: como mulher e como pesquisadora. Porque pesquisar e fazer poesia não são ofícios separados em mim. São o que me compõe, o que pulsa, o que vibra. Está no corpo, na alma. É meu ethos “Meu coração dói uma dor intensa, frenética e lenta.”
Entre as teorias que estudo e os versos que escrevo, há uma ponte: a escrita como gesto político, como espaço de resistência e cuidado. Na graduação, enquanto pesquisava o feminicídio e as cicatrizes deixadas na pele das mulheres, eu mesma também escrevia — com palavras que vinham da carne, da escuta, do sangue e da alma. Mais tarde, no mestrado, estudei Carolina Maria de Jesus não apenas como objeto de pesquisa, mas como farol. Com ela aprendi que escrever também é salvar-se. Hoje, no doutorado, sigo costurando escrevivência, cuidado de si e escrita de si como se fossem mantos: palavras que me cobrem, me protegem e me empurram para a margem onde há sol. “E aí se tem um paradoxo: como contar uma história apagada? Resgatar talvez… as letras até se transformarem em frases, obtendo assim os parágrafos…”
A poesia sempre foi o lugar onde pude me ver sem medo. Longe das expectativas dos outros. Longe da violência cotidiana. Longe das aparências. “Longe das aparências e fora do alcance do olhar, o interior do ser humano é complexo, lindo, mas ao mesmo tempo assustador.” Escrevo com a alma esgarçada, mas viva. Com o peito aberto, mesmo quando ele arde. Com a consciência de que meu corpo é território político e minha escrita, um ato de não silenciar “Não sei como é morrer, mas talvez eu saiba como é sentir-se morta e mesmo assim viver. Mas ainda tenho minhas lembranças, aquelas que nem o tempo pode apagar.”
A poesia me salvou inúmeras vezes. Durante a pandemia, quando o mundo desmoronava, as palavras continuavam aqui — firmes, silenciosas, me esperando. Foi nelas que me reconstruí. Foi nelas que encontrei um jeito de continuar, mesmo entre os escombros. “Amores e relações líquidas nos afastam.” Escrevo porque sei que não sou a única que sente assim. Escrevo porque escrever é testemunhar. Porque, com os poemas, eu não me afogo: eu nado. E levo comigo quem não teve fôlego. A poesia, para mim, é isso: um bote, um abraço, uma luta.
Gabriela Saverio — uma mulher que escreve porque sangra, e sangra porque vive. E vive porque escreve.



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